Stipe Miocic: a aula de humildade do rei dos pesos pesados do UFC

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Miocic com o cinturão dos pesados, devidamente defendido no UFC 220. Foto: Jeff Bottari/Zuffa LLC via Getty Images

* Publicado originalmente nas páginas de GRACIEMAG número 244, em 2017.

Nesta era pós-McGregor que o UFC está vivendo, passamos a acreditar que todo lutador precisa ser arrogante, marrento, desrespeitoso e polêmico se quiser ser campeão. Cada vez mais vemos atletas se vestindo como bufões, com óculos de sol à noite e com ofensas na ponta da língua contra colegas de profissão – que, vale lembrar, sofrem tanto quanto eles nos treinamentos. Em tempos nos quais ser um babaca virou pré-requisito para ganhar o estrelato, é um grande alento ter Stipe Miocic como o campeão dominante dos pesos pesados.

Embora o nome e o biótipo levem a crer que Miocic é natural de algum país da ex-União Soviética, o campeão é nativo americano do bucólico estado de Ohio. O peso pesado parece ter combinado as melhores características de sua ascendência croata e de sua pacata infância na cidade de Euclid (de menos de 50 mil habitantes): ostenta a frieza e a força dos lutadores do leste europeu com a tranquilidade e a cordialidade de alguns habitantes do interior dos Estados Unidos.

A primeira vez que o vi lutar foi em sua estreia pelo UFC. Era o UFC 136, de 8 de outubro de 2011, e lembro de ter achado legal vê-lo usando uma bermuda preta com a bandeira croata que imitava a clássica vestimenta do lendário Mirko “Cro Cop” Filipovic. Antes da horrível uniformização da Reebok, Stipe Miocic homenageava a nação de seus pais e de seu ídolo no MMA.

Me permitam abrir um parêntese aqui e, sem querer soar como um velho chato e saudosista, dizer que a padronização atual das bermudas dos atletas acabou com parte da personalidade e originalidade que são essenciais nos esportes individuais. Não teremos mais a bermuda com a geleira desenhada de Chuck “The Iceman” Liddell ou a entrada de Royce Gracie ou Georges St-Pierre com seus kimonos. Não teremos mais esse charme discreto que diferenciava os lutadores e divertia o público. Agora, do vestiário ao octógono, todos são obrigados a se portar da mesma forma e usar roupas semelhantes. O que, por sinal, deve estar deixando algo reprimido nos atletas, que, ao chegar para as coletivas de imprensa, precisam desesperadamente chamar a atenção. Mas estou divagando, vamos voltar a 2011 e ao longínquo UFC 136.

Confesso que só pela homenagem a Cro Cop já comecei a torcer por Miocic. Todavia, ele não ajudou muito a conquistar uma base de fãs naquela noite. Enfrentou o pançudo mediano Joey Beltran e precisou de três rounds para ganhar por decisão unânime dos jurados. Apesar de ter dominado o combate, fez uma luta feia e cansativa. Se fosse tomar por base apenas aquela noite, jamais diria que Miocic viria a se tornar campeão algum dia.

Seguiram-se então duas vitórias por nocaute e, quando começávamos a nos empolgar com o filho de croatas, veio outro banho de água fria. Em sua primeira luta principal de evento, no UFC on Fuel TV: Struve vs Miocic, Stipe foi nocauteado pelo grandalhão desengonçado Stefan Struve e sofreu a primeira derrota de sua carreira. Pensei comigo mesmo: cavalo paraguaio, ou melhor, croata paraguaio.

Pouco depois, tive a chance de vê-lo lutar pessoalmente. Na final do reality “The Ultimate Fighter Brasil 3”, Miocic deveria enfrentar Junior Cigano dos Santos. O brasileiro se machucou na última hora e foi substituído pelo meio-pesado Fábio Maldonado. Maldonado era conhecido por sua resistência anormal e por sua coragem. Esperava-se que ele fosse vender caro a derrota em três ou mais rounds de pancadaria. Eis que, com 35 segundos de luta, o ginásio do Ibirapuera tremeu com um direto demolidor com o qual Miocic derrubou Maldonado, que caiu praticamente apagado. O brasileiro deixou o octógono atônito, não por ter perdido (tinha plena consciência de que era o azarão), mas pela potência e acuracidade jamais sentidas num soco antes. Pensei comigo mesmo: não dá para subestimar um peso pesado com essa desenvoltura e precisão. E o tempo provou que fiz bem em rever meus conceitos.

Apesar de ter perdido a primeira luta contra Cigano quanto esta finalmente aconteceu (em dezembro de 2014), foi um combate sangrento e equilibrado que poderia ter sido vencido por qualquer um dos dois. Daí seguiu-se uma das vitórias mais dominantes da história do UFC, contra ninguém menos do que o duríssimo Mark Hunt. Aliás, dominante não chega a descrever adequadamente a unilateralidade dessa peleja: foram 361 golpes acertados por Miocic contra míseros 48 acertados por Hunt, até que a luta fosse interrompida no quinto round. Praticamente um monólogo.

Outro nocaute, dessa vez contra Andrei Arlovski, credenciou Miocic a disputar o cinturão dos pesos pesados. O americano entrava como azarão pois disputaria o título contra o campeão Fabricio Werdum, e na casa do adversário. Werdum vinha de uma atuação perfeita na qual finalizara o antigo bicho-papão Cain Velasquez e estava empolgado em fazer a luta principal do primeiro evento do UFC num estádio de futebol no Brasil, em Curitiba.

Fabricio é conhecido por ser brincalhão e não perdia uma chance de debochar e fazer caretas. Miocic, contudo, mantinha sua simplicidade e cordialidade. Não se alterou por um momento sequer e jamais provocou o oponente ou desrespeitou a torcida brasileira. De maneira simples e elegante, Stipe calou Werdum e os 45 mil presentes na Arena da Baixada ao nocautear o campeão com um cruzado enquanto andava para trás, conquistando o cinturão em território hostil.

Muitos atletas mudam sua personalidade quando se tornam campeões, rendendo-se à bajulação, à ostentação e à pressão para vender ingressos. O mais impressionante é que a consagração parece não ter alterado Miocic. Além de seguir portando-se discretamente e sendo respeitoso com os adversários, Stipe continua sendo membro efetivo do corpo de bombeiros do condado de Cuyahoga, em Ohio. Em recente entrevista, o peso pesado mais temido do mundo disse que continua até mesmo lavando latrinas no quartel de bombeiros, para “manter os pés no chão”. Parece seguir a canção do “Tremendão” Erasmo Carlos: “Mesmo hostil, qualquer gigante pode ser gentil”.

Na revanche contra Cigano, em maio de 2017, ambos os adversários mantiveram uma relação respeitosa, concedendo entrevistas sem baixarias ou provocações chulas. No UFC 211, o bombeiro campeão deixou para dar seu espetáculo onde realmente interessa: dentro do octógono. Encurralou e nocauteou seu último algoz aos 2min22s do primeiro round.

Com esse impressionante triunfo, Miocic acumulou sua quinta vitória consecutiva por nocaute, contra atletas de altíssimo nível (Hunt, Arlovski, Werdum, Overeem e Cigano) e igualou o recorde de defesas de cinturão do peso pesado. Essa categoria é justamente uma das favoritas dos fãs porque, devido ao tamanho e potência dos competidores, pode gerar conclusões emocionantes a qualquer momento – e para qualquer um dos lados. Para que o grande público voltasse a prestigiá-la, faltava apenas alguém para se manter no topo e garantir bons nocautes.

Stipe Miocic já começa a atrair multidões de volta ao peso pesado; sem estripulias, barracos ou excentricidades. Palmas para o Gigante Gentil.

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