Rosado: “O Jiu-Jitsu ajuda até a manter os laços familiares e os relacionamentos”

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Mestre Rosado e a força do seu laço com a família. Foto: Arquivo pessoal

Entrevista original publicada nas páginas da GRACIEMAG número #259, de 2018. Para ler outros artigos clássicos sobre o melhor do Jiu-Jitsu, assine a GRACIEMAG digital!

Antes de iniciar sua entrevista com GRACIEMAG, mestre Carlos Antonio Rosado pede um instantinho e mede como está a glicose no seu sangue. “A taxa está boa, 127. Podemos começar a conversa”, pisca o faixa-vermelha. De fato, o famigerado aluno de Carlson Gracie está um doce: num papo raro, franco e exclusivo, realizado numa noite de agosto, o mestre recorda como a filosofia do Jiu-Jitsu foi importante até mesmo quando ele se apaixonou à primeira vista por uma certa moça que passava por Copacabana, e que há 50 anos se tornou sua mulher. “Eu vi a Gracinha (dona Maria das Graças) pela primeira vez, estava atravessando a rua, e pensei com a cabeça de lutador: se eu não aproveitar agora eu não vou ter outra chance. E fui lá”, recorda o professor. Rosado, que continua vestindo o kimono toda semana para ensinar, lembrou de várias histórias, como a vez que precisou se consultar com grande mestre Carlos Gracie, e outros episódios memoráveis.

GRACIEMAG: Fala-se muito no poder do Jiu-Jitsu na formação dos indivíduos, e pouco em como a arte ajuda a fortalecer famílias e os relacionamentos. Qual para você é a grande força do Jiu-Jitsu, mestre?

CARLOS ROSADO: O Jiu-Jitsu tem um papel fundamental que é o de deixar a pessoa segura. Os anos de treino, a luta contra outro indivíduo, passam segurança para você enfrentar qualquer situação, e isso serve para crianças, adultos e senhores. Eu, por exemplo, era um rapaz extremamente introvertido, tímido mesmo. Anos depois, graças ao Jiu-Jitsu, era um empresário que precisava conversar com donos de banco, políticos e outros poderosos, e fazia isso sem qualquer tipo de acanhamento, olho no olho, mão firme ao cumprimentar qualquer um. Com o Jiu-Jitsu o sujeito perde suas inseguranças, e nada mais o intimida.

Como essa firmeza ajuda em casa?

Para você ter uma ideia, quando o Carlson abriu em Copacabana uma turma feminina, minha esposa foi uma das primeiras a aparecer. E o pessoal não acredita, mas ela sempre arrumava um modo de me ganhar! Era a única na academia que me vencia com facilidade. Jamais consegui vencê-la, e o pior é que é verdade. A partir daí, com o casal treinando, nossos três filhos passaram a seguir o exemplo e também iam para a academia em vez de ficar fazendo besteira na esquina. Hoje meu filho (Carlos “Massa”) é faixa-preta e meus três netos também já treinam. Como a família Gracie sempre demonstrou, nada melhor que pais e filhos treinando, isso estreita a relação em casa, facilita as conversas sérias. Em casa, na vida a dois, é preciso paciência, perseverança, e o Jiu-Jitsu ajuda nisso também: você aprende que há sempre os dias bons e dias ruins, e não desiste nas primeiras brigas. Você pensa: eu vou domar essa fera! Ela não vai me convencer a desistir! (Risos).

E você acha que o Jiu-Jitsu também o ajudou a conquistar sua esposa, há 50 anos?

Não tenho a menor dúvida disso. Pelo seguinte, eu estava dirigindo pela Nossa Senhora de Copacabana e ela atravessou a rua na minha frente, aquela garota linda. Pensei como lutador: é agora, se eu não aproveitar agora eu não vou ter outra chance. E fui lá. A maior ilusão que a gente tem na vida é que as oportunidades vão voltar a aparecer. Na luta a gente percebe que em 99% das vezes aquelas chances são únicas. Não existe “a próxima vez”.

O que mais você aprendeu na arena de mestre Carlson, na Figueiredo Magalhães?

Tenho mais de 50 anos de Jiu-Jitsu e creio que a grande lição é: treine, treine e treine que você vai chegar lá, como eu cheguei. Uns vão chegar mais rapidamente que os outros, mas basta voltar no dia seguinte que o camarada vai chegar lá. Acho que nunca tive o dom, mas fiquei à vontade para a coisa. Tanto que comecei a me destacar na maior arena de lutas da minha época, uma sala em que só entrava lutador gabaritado. Era sobrevivência na selva. Tinha faixa-azul, roxa, marrom, preta e vermelha, a cor da faixa não interessava que o Carlson nem ligava muito para isso, o que importava era que ali só tinha fera. Tanto que o professor Carlos adorava ficar ali, sentadinho de pernas cruzadas espiando a gente. Ele curtia me ver lutar, eu passando o cerol e ele sentado ali e sorrindo.

Mestre Rosado faz guarda para o filho faixa-preta, Carlos “Massa” Rosado. Foto: Marcelo Dunlop

E como eram os clássicos desafios, com o pessoal de outras academias aparecendo?

Aquilo era um imprevisto que cada dia mais se tornava rotineiro, de tanto que ocorria. Vinha lutador de todos os cantos do país e até do Japão para nos “visitar”, e o Carlson me convocava na hora. Juntava gente para assistir, e eu não tinha escolha: eu precisava estar pronto física e tecnicamente, era necessário treinar cada vez mais para não desapontar o Carlson. E quando um surgia eu não tinha como dizer que estava gripado, com o dedo machucado, ou que já tinha dado tantos treinos, que você não podia correr do pau. Meu orgulho é que sempre que apareceu um visitante, eu fiz bonito, para alegria do mestre Carlson. Isso é o maior prazer que tenho, poder ter dado alegrias a ele. E se eu pudesse, agradeceria a cada um dos meus oponentes. Foram esses camaradas que me fizeram ser como sou hoje. Teve vezes em que eu pensava ter crescido confiante e seguro naturalmente, que era algo que brotara com os anos. Só depois, observando o comportamento dos meus alunos, pude enfim perceber como o Jiu-Jitsu modifica a pessoa. O jeito de ser, a maneira de apertar a mão, como eles olham nos olhos. O sujeito entra na academia de um jeito e sai outro. Foi o Jiu-Jitsu, meus parceiros de treinos e rivais que me fizeram assim.

Muita gente ainda crê que o Jiu-Jitsu requer um dom, uma habilidade natural. Como foi para você?

Olha, eu não tinha jeito para nenhum esporte, nada. Tentei basquete, futebol, sinuca, pingue-pongue, e eu era terrível. Me escondia na praia quando era garoto para que ninguém me chamasse para jogar nada. Quando jogava vôlei, rezava para a bola não vir na minha direção! Até que fui parar no Jiu-Jitsu com 16 anos e percebi que tinha um biótipo bom para a coisa. E se não fosse o Jiu-Jitsu, eu talvez fosse hoje um camarada frustrado, que juraria que não sabe fazer nada, com zero habilidade atlética. Por isso quando cruzo com um conhecido sedentário, o convido para conhecer o Jiu-Jitsu. E quando o sujeito diz que está sem tempo mas vai aparecer, eu respondo: “Se você não conseguir aparecer, não vai mudar em nada a minha vida. Mas se você começar a treinar Jiu-Jitsu, eu sim vou mudar a sua”.

Como foi seu caso com a diabetes, e como o grande mestre Carlos o ajudou?

Isso já tem uns 40 anos, começou quando eu tinha 30. De um dia para o outro, eu que tinha mais de 85kg comecei a emagrecer e percebi que algo estava errado. Numa semana, perdi dez quilos. Quando descobri o que era e me disseram que a diabetes não tinha cura, tentei de tudo. Até que o Carlson me levou para ver seu pai, que me atendeu. Ele me receitou um chá, dieta à base de queijos e figo, o espaçamento de horas entre as refeições e me disse o que eu não podia misturar. Eu tratei a doença com a Dieta Gracie por um ano. Me ajudou muito a conviver com a doença no início, mas depois precisei mesmo tomar insulina, porque meu diabetes é do tipo 1, mais agressivo. O curioso é que a doença podia ter me feito desistir de treinar e competir, mas foi o contrário: eu passei a malhar mais, comecei na ginástica forte e me tornei um lutador ainda mais casca-grossa, pois malhava de noite e fazia Jiu-Jitsu de manhã, quando isso ainda não era comum.

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