Há 20 anos, Saulo ensinava as dores e sufocos de ser um campeão de Jiu-Jitsu

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A espera pelas lutas, a análise dos adversários, o relato dos combates. O texto a seguir, produzido e editado para a GRACIEMAG #67, conta o Mundial de Jiu-Jitsu de 2002 na visão de Saulo Ribeiro, maior recordista em títulos até então, com seis medalhas de ouro e duas de prata acumuladas em sete anos de competição.

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Todo dolorido. Foi assim que eu acordei no domingo, 28, último dia do VII Mundial. Peguei o meu kimono para ir para o Tijuca Tênis Clube pensando o seguinte: se hoje fosse um dia normal, a possibilidade de eu ir treinar era zero. Ia fazer um rango no restaurante Guaranamania e depois deitar e descansar. Tava na maior lombra.

Ao mesmo tempo, eu tinha que ir trabalhar, correr atrás do título que ainda não possuía, o de campeão absoluto. Fiz a minha parte ontem, venci três lutas e estou classificado para a final, mas não foi fácil. Na verdade, depois da minha segunda luta, contra o [Roberto Corrêa] Gordo, sentei no chão ao lado do tatame muito puto. Fiz preparação física nos últimos meses, achava que estava numa forma ótima, mas no meio da luta eu tava morto.

Eu sabia que a minha luta com o “Careca” ia ser difícil, sempre é. Ao contrário da garotada nova que tem por aí, ele não erra, não dá esgrima e a gente se equivale tecnicamente. Mas quando eu abri vantagem no início, e quando ele me deu a perna direita e tomou um kouchi-gari, achei que a luta tava ganha. De repente, ele tinha trancado as pernas nos meus joelhos, e eu fui raspado. Puxei o ar e não veio nada, e me segurei para não transparecer meu desespero. Fechei a guarda e, antes do fim, quando fui para a minha raspagem, ele cresceu o olho no crucifixo, como sempre, e fiz mais dois pontos.

Não adianta se preparar, você só sabe o que vai acontecer com o seu corpo ali dentro se você esteve ali antes” Saulo Ribeiro

Tinha vencido, mas estava revoltado com o meu mau condicionamento. E fiquei me perguntando o porquê. Remoí isso durante o resto do dia, e só hoje de manhã achei a explicação: falta de ritmo de competição. No meu melhor ano, 98, eu lutava campeonato quase todos os finais de semana. De Jiu-Jitsu ou judô, pequeno ou grande, não queria saber. Desde 99, só tenho lutado o Mundial e o ADCC. É isso. Não adianta se preparar, você só sabe o que vai acontecer com o seu corpo ali dentro se você tiver estado ali antes. E quanto mais você competir, mais você vai conhecer o seu corpo.

Chegar no ginásio do Tijuca é sempre bom. Foi lá que, desde 96, venci cinco campeonatos mundiais. Claro que é problemático lembrar que ano passado – único ano em que fui derrotado –, nessa mesma hora, eu estava na mesma situação: tinha chegado à final do absoluto, mas ia tentar lutar o meio-pesado para ser campeão. A experiência tinha me ensinado que eu não podia cair no mesmo erro, partir para dentro dos caras do peso feito um louco e ficar no bagaço para as finais.

Até hoje ainda acho que eu não perdi o campeonato para o [Fernando Pontes] Margarida, durante a final. Eu perdi antes. Para o [Flávio Almeida] Cachorrinho, na semifinal. Apesar de ter vencido a luta, ele me matou. Que cara forte! Se ele não desse a esgrima, ia ser o cara mais difícil de ser vencido de todos. Eu não sei como ele perde para o Margarida, se ele é muito mais forte.

Esse ano, meu plano era outro: vencer o peso sem me cansar muito. E, na área de aquecimento, como tava de baia, ia poder ver todo mundo antes de eu lutar. O Erik [Wanderley] foi chamado. Era hora de olhar o inimigo contra um cara mais fraco. Ele certamente vai usar todas as suas armas mais fortes para acabar logo o serviço. No meio da luta, alguém chega e pergunta: “Vai de moto para casa?”. “Claro, trouxe até o capacete”, brinco, sem deixar claro que, na verdade, aquela Honda Biz de prêmio para o campeão era o que menos importava.

Continuo prestando atenção. Ele mete a mão direita por cima, é candidato a tomar um ipon-seoi. Tomou uma queda. É outro cara bom e forte, mas, por baixo, dá a esgrima. Eu sei que ele vai vencer, provavelmente chegar à final, então reparo mais. Em pé, outro trejeito. Ele finge que vai puxar para a guarda e coloca a perna direita na frente para atacar. Pode tomar um ouchi-gari. Essa vai ser a estratégia.

11:00. Já estou há quase uma hora esperando, e minha luta se aproxima. De repente, noto um movimento na entrada do ginásio. Corro os olhos à procura do motivo e me surpreendo. É o Rickson. Veio fazer uma visita surpresa. A responsabilidade aumentou. O homem vai ver se tenho feito direito o dever de casa. Acompanho o bicho e penso alto: “O cara é foda. Dá para sentir a sua energia”.

A presença de Rickson, Royler, Renzo no estádio e alguns erros que vejo os caras cometendo nas lutas me faz refletir no suporte que esses caras me deram, me poupando de muitos desses erros. A versatilidade do Royler, sempre apto a fazer qualquer tipo de jogo; por cima, por baixo, em pé, no chão. O Renzo, que mesmo quando morre no gás nas lutas, ninguém consegue fazer nada com ele, o que prova ainda mais a sua técnica. E o Rickson, que quando treina contigo parece que tem 200kg. Procuro aprender o que cada um deles tem de melhor, adaptar isso no meu jogo.

Volto a prestar atenção nas disputas. No ringue mais próximo, o da esquerda, [Ricardo] De la Riva vai lutar. É uma incógnita. Só dará para saber como ele vai se sair depois da primeira bufada. Voltar após nove anos é complicado. Depois de um [ano] já é foda. Uma torcida grande grita para ele. Maneiro o cara ter um carisma assim. Ele vence bem, e volta para a área de aquecimento. Vou cumprimentá-lo, e ele me parabeniza, aproveitando para elogiar o Royler. Dá para sentir que não é falsidade, esse cara é gente fina mesmo. Tem uma humildade muito grande. Mesmo se perder, continua sendo campeão.

Vejo a luta do Fábio Nascimento, o cara que vou enfrentar de primeira. Ele raspa o outro na meia-guarda. Ontem, na primeira luta do absoluto, ele me levantou assim. Mas eu pensei: “Me recuso a ir nessa”, e atochei o peso.

A minha hora não chega e por mais que queira me concentrar, fiquei mais é vendo as outras categorias, analisando os caras que estão aparecendo. Não sei porque, penso numa luta do Pé de Chumbo com o “Jaca”. Essa ia ser boa de ver. Os caras são muito preparados e fazem força sem cerimônia… No ringue que o De la Riva lutou, agora o [Marcelo] Pupo tava vencendo uma luta da categoria leve. Reparo como ele melhorou. Antigamente ele era fraco, mas agora, não perde posição, distribui o peso melhor. Pode surpreender e ser campeão.

Ele me deu a esgrima já no início da luta. Pensei: ‘Assim ele facilita o trabalho da diretoria'”

Fiz a minha primeira luta, e venci por pontos. Ele me deu a esgrima já no início da luta. Pensei: “Assim ele facilita o trabalho da diretoria”. Com esse erro, eu sabia que ia ser difícil perder. E venci. No meio da luta, ele fez uma pegadinha chata na minha perna, me prendeu na meia-guarda. Depois eu estudo isso melhor, penso. Vou lá cumprimentar meu pai, minha mulher, o pessoal que veio torcer por mim. Por mais que eu esteja focado na competição, tenho que dar uma atenção para quem tá sempre comigo.

Voltei então para a área de aquecimento, mas agora o tempo passava mais rápido. Quando Frédson e De la Riva se preparavam para lutar a semifinal do pena, eu já estava voltando para o outro lado, onde ia lutar a semifinal. Pensei na luta deles: meu coração está com o Frédson, que é de Manaus e da Gracie Barra, mas acredito na vitória do De la Riva. É mais técnico. E, nessa hora, se eu não acreditar mais na técnica, vou acreditar em quê?

Na espera para a semifinal, vejo o Pé de Pano – meu adversário na decisão do absoluto – chegando na área de luta. Com um tamanho desse, um peso desse e umas pernas dessas, não dá para pensar boa coisa. Ele vem falar comigo, porque a gente tinha meio que se comprometido de não lutar. Mas em um caso desses não tem jeito, e eu sei disso. É o título que os dois tão querendo, e qualquer pacto agora fica de lado. Os dois vão dar tudo, sem cerimônia.

Entro para lutar com o [Marcel] Louzado, do Godói. No início da luta, eu faço os dois pontos que vão me garantir a vitória, com uma ida para as costas em pé. Novamente, minha tática funciona. Eu tinha visto na luta anterior, contra o [mineiro Vinícius Antunes] Wallid, que ele entra de o-chi-gari. Deixei então minha perna direita na frente, de isca, e quando ele entrou, tirei a perna, agarrei na dele e fui para as costas. Ele tentou correr atrás, mas eu tava na final, e sabia disso. E a situação dele foi piorando no decorrer da luta.

Mal o juiz levanta o meu braço, uma surpresa de merda. Enquanto eu tava lutando, meu irmão tinha se machucado no ringue ao lado, e me avisaram. Chorando, ele era atendido pelos médicos e tava fora da briga.

Faltavam três horas para o início das finais. A única coisa que vinha na minha cabeça era o seguinte: comer ou não comer?

Intermissão
17:00. Chegou a hora. Eles anunciam a ordem das finais. O absoluto primeiro. Pensei bem, coloquei a realidade na balança e pedi para trocar. Era arriscado demais. Posso cansar muito, perder para o Pé e fazer uma luta ruim no meio-pesado, perigando ficar sem os dois títulos. Lutando o meio-pesado primeiro eu teria mais chances de garantir ao menos um título. E podia ganhar mais confiança para a final do absoluto.

A luta contra o Erik foi dentro do previsto. Ele colocou a perna na frente, eu usei o ouchi-gari. Saí na frente, e era o que eu precisava. Lá para as tantas, ele me deu a esgrima. Cheguei na meia e consegui mais uma vantagem. Ele ainda tentou um ezequiel, mas eu sabia que não existia ângulo para apertar, já que eu tava jogando o meu peso para frente. Passei a guarda e garanti o título. Mas depois da força que eu fiz, deu até fraqueza pensar que ainda tinha o Pé de Pano.

Descansei enquanto rolaram as finais de todos os outros pesos. E entrei com uma tática definida na luta contra o Pé de Pano. O negócio era jogar por cima mesmo. Essa história de que ele não sabe passar [a guarda] é besteira, ele é pesado e passou a guarda de todo o mundo por aí. Eu ia obrigar o cara a mudar o tipo de guarda, jogar com os ganchos por dentro. Conseguir umas vantagens e quem sabe uma passagem e vencer. O plano foi indo bem, mas ele é tão longo que até a guarda de gancho me complicou, e eu acabei sendo raspado. Ainda dava para correr atrás, mas me descuidei e ele botou na [guarda] fechada. Foi quando eu senti o seu peso. Não dava para abrir de qualquer jeito, era capaz de ele cair montado. Tentei abrir sem ficar em pé, mas ele levantava o quadril e, com aquelas pernas longas, minha mão ia da canela para o joelho. Não tinha jeito, aquela era dele.

Após a premiação, enquanto dava uma entrevista, meu pai me jogou uma latinha da gelada. Era tudo que eu precisava, fazia um mês que não tomava uma cerveja. Mas a análise dos meus erros não saía da cabeça. E pensei em duas resoluções. Número um: tenho que competir tudo, Jiu-Jitsu e Judô, e estar em um ritmo bem melhor. Número dois: no fim das contas, disputar o meio-pesado novamente diminuiu minhas chances no absoluto. Ano que vem vou arriscar só o aberto. “Ano que vem”, eu pensei, e essa é a melhor parte: a vontade de estar aqui de novo. Isso eu ainda não perdi.

Saulo Ribeiro por cima de Gabriel Napão. Fotos: Gustavo Aragão/GRACIEMAG

O card de Saulo até 2002: 26-4

2002
absoluto

Márcio Cruz (d)
Gabriel Gonzaga (v)
Roberto Corrêa (v)
Fábio Nascimento (v)

meio-pesado
Erik Wanderlei (v)
Marcel Louzado (v)
Fábio Nascimento (v)

2001
absoluto

Fernando Pontes (d)
Márcio Cruz (vc)
Leandro Borgo (v)
Marcos Scheffer (v)

meio-pesado
Fernando Pontes (d)
Flávio Almeida (v)
Murilo Rupp (v)
Roger Coelho (v)

2000
super-pesado

Daniel Simões (v)
Gabriel Gonzaga (v)
Adílson Lima (v)
Roberto Ferreira (v)

1999
meio-pesado

Roberto Magalhães (v)
José Marcelo (v)
Givanildo Santana (v)
Marcelo Hertz (v)

1998
pesado

Fabio Gurgel (v)
Murilo Bustamante (v)
Anderson Xavier (v)

1997
médio

José Mario Sperry (d)
Antônio Schembri (v)
Rony Rústico (v)
Guilherme Santos (v)

1996
leve
Marcio Feitosa (v)

*v – vitória; d – derrota; vc – vitória por contusão

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